Texto Experimental 2/10 - Havia um Gato Morto no Meio do Caminho - Alternâncias de Realidade

Texto Experimental 2/10

Havia um Gato Morto no Meio do Caminho - Alternâncias de Realidade



Eu passeava tranquilamente com meu cachorro pela praça, parei e vi um gato morto no meio do caminho. Assustei-me e olhei-o fixamente. O tempo transcorreu, cinco, dez ou quinze minutos. Fui embora e mantive o gato morto na minha mente. O gato morto virou minha flor da obsessão.

Eu era um gato que andava pelo meio da floresta. Vi um humano morto deitado no chão. Parei, olhei o humano fixamente e fiquei a lamber meu pelo tediosamente. Alonguei-me, enrolei-me e botei-me a dormir perto do humano morto que estava num dormir perene.

Havia um gato morto no meio do caminho. Eu era um homem morto no meio do caminho. Eu andava com meu cachorro morto no meio do caminho. Eu era uma rua morta no meio do caminho. Havia uma rua meio morta no meio do caminho morto. Eu era rua morta no meio do caminho que partia pro abismo. Eu era a morte que morre no caminho morto.

Nos dias posteriores, o gato morto ainda ficou por lá. Passava e olhava-o todos os dias, era o seu mais fidedigno espectador. Via o gato na praça, na mente e no sonhar. Dava-me sempre por dizer: "há um gato morto no meio do caminho". Havia em mim uma nostalgia trágica. O gato morto ficava a se decompor e eu a sonhar com o gato morto. Era o gato morto minha ideia fixa e obtusa.

Um dia fui para passear, encontrar a tranquilidade e trazer paz pro espírito. Vi e não pude acreditar: eu estava morto no meio do caminho. Vi-me enforcado na floresta no meio do caminho. Eu estava morto no meio do caminho. Olhava-me a decompor com um divertido horror. Horroriza-me e fixava-me em minha figura morta no meio do caminho. Só podia pensar: "Eu estou morto no meio do caminho morto".

Nos outros dias, o humano morto permaneceu lá. Descompôs-se serenamente. Teria sido ele assassinado por outro humano? Seria ele um suicida? Teria sido envenenado? Morreu vagarosamente sem nem se dar conta? Ensandeceu pacificamente e findou seus dias penumbrosos? Não sei, o humano estava morto e nada poderia ser falado. Só se sabia que era a morte, trágica e determinante. Eu era um gato, um inocente gato andando pela praça. Ninguém suspeitaria de minha inocência felina. Caçava um rato, caçava um pássaro. Atormentava aqueles que por mim se fixavam.

Em meu sonho o gato era grande, maior que um carro, maior que um elefante. Seus ossos faziam-se mais presentes. Ele andava como um zumbi dócil por meio da praça. Matando os pássaros pelo meio do caminho, devorando-os graciosa e despreocupadamente.

Eu era um gato grande no meio do caminho. Matava pombo e rato no meio do caminho. Um dia arrefeci no meio do caminho. A chuva, o frio e a fome ficaram comigo no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho e ninguém viu o meu finar. A solidão morreu ao meu lado no meio do caminho. Por que ninguém viu ao menos o meu esfalecer? Nem em minha morte sou digno de se ver. Eu sou o gato morto no meio do caminho: passam, veem, ignoram-me e partem. Preencho-me de vazio no meio do caminho.

Em meu sonho o humano era zumbi. Ele botava fogo em gravetos recolhidos e alimentava-me com peixes frescos e quentes. Em sua pele decomposta insetos andavam por toda parte, numa hora saindo e noutra entrando. O humano nunca chegava a falar. Era um humano taciturno e pacífico no meio do caminho. Vivia enquanto morto no meio do caminho.

Por vezes sonhava que eu ia a praça e via-me morto a me decompor. Olhava-me indiferentemente num prazer tedioso. O que me assustava não era minha figura morta: era a ideia do tédio e pequenez da morte. Eu era tal como o gato: um morto banal a preencher o cenário.

Eu era uma pessoa viva que era morta e que morreu sem perceber no meio do caminho. O gato que era vivo. Achei-o morto por negação. Eu era um homem morto no meio do caminho. Quando dei por mim, eu já não era homem, eu já não era morto, eu já não era nada.

Havia um gato morto em meu coração. Ele crescia vagarosamente em meio a turbulência de meu coração. O gato arranhava, miava e ronronava. Percebi-o tardiamente. Gato morto, morto, morto. Morto dentro de mim. Eu morto. Havia um gato morto dentro dum homem morto. Maldito gato morto que era eu no meio de meu caminho. Gato morto, homem morto, caminho morto. Havia um gato morto no meio do caminho. Havia um homem morto dentro do gato morto. Havia um gato morto que era um homem que vivia vivo enquanto morto. Maldito gato morto no meio do caminho. Maldita figura obsessiva que turva o meu caminho turvo.

Era um gato morto a olhar um humano morto. Era um humano morto a olhar um gato morto. Era um meio caminho morto a olhar o passado vivo e o futuro sobrevivo. Era um morto vivo a olhar o vivo morto. Havia o morto dentro do vivo que vivia como morto. Havia o morto que vivia sem perceber que ainda vivia. Havia o que havia sem saber que se havia.

Havia um gato morto no meio do caminho. Eu nunca me esquecerei disso. Eu era o gato morto no meio do caminho. Eu era o gato, eu era o homem, eu era o morto e o que também vivia.

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